quinta-feira, 15 de outubro de 2009

PRIMOGÊNITA RENEGADA


Eu ainda me lembro quando a colocaram nos meus braços. Tão frágil, tão pequena. A envolvi num terno abraço e ofereci todo o meu carinho de mãe... eu sabia que aquele momento estava condenado a nunca mais acontecer, pois meu bebê era uma menina. Vivemos em um país no qual os casais só podem ter um filho. Meu marido sonhava com um menino, para manter a tradição do nome e da honra da família. Mas veio uma menina... não podemos tentar novamente. Quando ele chegou, correu para o quarto. O meu olhar já revelava que não era o que ele esperava. Sua decepção foi aterradora. Eu me lembrei da família dele me dizendo que eu tinha a obrigação de lhe dar um menino porque era um sonho dele... Ele correu até mim e a me tirou dos braços. Meu instinto de mãe falou mais alto e o ataquei. Os irmãos dele me seguraram, exclamando que era o melhor a ser feito. Eu tinha que tentar novamente. Estava em jogo a honra e o nome da família. Eu não sei onde minha filha foi parar. Chorei por dias, sentia ódio do meu marido e demorei muito para perdoa-lo. Mas cresci aprendendo que honra é o bem mais importante. Aceitei. Mas às vezes eu sonho com ela, jogada em uma sarjeta... coberta por seu próprio sangue. Esquecida. Invisível.

ILHA DAS FLORES


Meu nome é Joana. Tenho 29 anos e três filhos para criar sozinha. O pai sumiu, vai saber por onde anda. Moro na Ilha das Flores. O nome é bonito, mas não se engane. Aqui não é o paraíso. Eu não sei ler nem escrever. Mas já não me preocupo muito comigo. Penso mais no futuro dos meus filhos. Às vezes acho que Deus nos esqueceu. Mas depois a fé de dias melhores volta em meu coração. Temos que garantir nossa comida. Sim, porque têm outras pessoas como nós disputando a mesma comida todos os dias. Onde vamos pode-se chamar de feira. Mas não é aquela feira bonita cheia de frutas e verduras frescas. Ah, se um dia eu pudesse ir numa feira dessas... mas é só um sonho. A feira que vamos fica numa fazenda e temos que correr para pegar melhor lugar na fila, porque muitas outras pessoas como eu disputam essa “feira”. Você quer conhecer? Então me acompanhe. Meus filhos vão junto para me ajudar. Toda vez que chegamos lá ficamos ansiosos esperando o portãozinho abrir. Os caminhões que trazem a comida vêm de muitos lugares. Chegamos... Hoje somos os primeiros! Olhe, o caminhão de comida chegou. Já podemos sentir o cheiro. Não, não é o aroma agradável de frutas frescas. Pode acreditar, você está sentindo cheiro de comida podre. Olha lá, o caminhão descarregando tudo. Não é nossa vez ainda. Primeiro são os porcos. Temos que esperar eles se empanturrarem e só depois os empregados do fazendeiro abrem o portãozinho pra gente. Pronto, agora é nossa vez. Cada família tem 5 minutos para pegarem os restos. Vamos, crianças, somos nós agora. Em meio à lavagem procuramos algo que ainda pode ser comido. Ah, já nos acostumamos com a podridão. Afinal, isso é o que nos resta para sobrevivermos... Se tenho um grande sonho? Sim, claro! Quero que meus filhos tenham a oportunidade de terem uma vida digna e feliz, para que não ofereçam restos de porcos para os meus netos.

* Em Porto Alegre, encontra-se Ilha das Flores, onde pessoas como você alimentam-se da lavagem dos porcos em decomposição, enquanto você reclama da mistura que sua mãe fez para o almoço...